Resquícios da Imagem: Uma Arqueologia Pictórica
Bruno Cobalchini Mattos | 2015
Vista da exposição "A Carne da Imagem: Pequenos Formatos", Microgaleria do StudioClio, Porto Alegre - RS (Setembro/2015)

Há uma entrevista recente com a socióloga neerlandesa Saskia Sassen em que ela, ao falar da crescente vigilância dos cidadãos por parte do estado, afirma a respeito das imensas edificações e aparatos construídos para esse fim: "Há muita materialidade, mas nós não a vemos. (...) Para mim, esse é um fato extraordinário do mundo contemporâneo: somos tão bombardeados com informações que, se elas não chegam até nós por certos canais, nós não as vemos". A observação - referente a uma estrutura que, na incerteza de quais informações devem ser armazenadas, opta simplesmente por armazenar o máximo possível - é especialmente reveladora devido à natureza de seu objeto. Afinal, se somos incapazes de ver grandes construções recentes que assomam no horizonte de nossas próprias cidades, o que resta ao imaterial?

Pois é também fato inegável que vivemos imersos em um ruído branco de narrativas, ficcionais e não ficcionais, relevantes e irrelevantes, verídicas e inverídicas. Fala-se com frequência crescente em uma "era da curadoria", onde mais importante que saber como ler, assistir ou refletir é saber o que ler, a que assistir ou sobre o que refletir - escolhas que cada vez mais nos parecem demasiado cruciais para ficarem entregues ao acaso. Daí se origina um estado de ansiedade constante e uma decorrente desvalorização das narrativas, algo exposto de maneira brilhante pelo norueguês Karl Ove Knausgård em um trecho do livro Um outro amor:

Nos últimos anos eu tinha cada vez mais perdido a fé na literatura. Eu lia e pensava, isso tudo foi inventado. Talvez fosse porque estivéssemos completamente rodeados por ficções e narrativas. Aquilo tinha inflacionado. Não importava para onde olhássemos, sempre encontrávamos ficção. Todos esses milhões de livros pocket, livros em capa dura, filmes em DVD e séries de televisão, tudo dizia respeito a pessoas inventadas num mundo verossímil, mas também inventado. E as notícias do jornal e as notícias da televisão e as notícias do rádio tinham exatamente o mesmo formato, os documentários tinham o mesmo formato, também eram narrativas, e assim não fazia diferença nenhuma se a narrativa que contavam tivesse acontecido de verdade ou não. Havia uma crise, eu sentia em cada parte do meu corpo, algo saturado, como banha de porco, se espalhava em nossa consciência, porque o cerne de toda essa ficção, verdadeiro ou não, era a semelhança, e o fato de que a distância mantida em relação à realidade era constante.

Essa crise foi intuída há muito tempo pelo campo das artes visuais, que tem na circulação privilegiada de narrativas uma de suas características constitutivas. Mostras de arte são um dos poucos ambientes institucionais onde ainda se criam as condições para uma contemplação mais demorada, relativamente livre de distrações e relativamente blindada contra a ansiedade. Com isso em mente, diversos artistas exploraram e se apropriaram desse espaço para "resgatar" determinadas narrativas do ruído branco (de seu estado de crise), atribuindo um novo lugar de fala a narrativas que, por um motivo ou outro, possuem um grau ínfimo de visibilidade.

Tal abordagem comporta uma extensa variedade de temas, dentre os quais destacam-se aquelas que são críticas ao próprio sistema das artes (remontando a Duchamp), mas nos últimos anos o mais frequente tem sido as causas políticas, por vezes travestidas de causas humanitárias. No entanto, esse tipo de arte engajada parece abrigar uma contradição interna: se, por um lado, é válida a arte que busca agir sobre o contexto que lhe dá significação e legitimidade, como dissociar intenções verdadeiramente humanistas da apropriação de discursos visando ao reconhecimento institucional?

A obra de Ricardo Mello consegue se esquivar desta zona de sombra ao deslocar seu objeto de um âmbito político-econômico para outro, político-simbólico. O tema de suas pinturas são o oposto exato das narrativas urgentes que definem a arte engajada: o resgate de Ricardo se volta para narrativas abandonadas em fitas VHS de filmes de relevância terciária. Mas o ato não deixa de ser político, visto que sua técnica de produção demanda imensas quantidades de uma moeda comum ao âmbito econômico e ao simbólico: tempo. Não é coincidência que, em seus primeiros anos, constava das especificações técnicas das obras da série Imersão Noturna, que compõem esta exposição, a duração do processo de produção pintura - valores que podiam ultrapassar as 600 horas de trabalho.

Horas que foram dedicadas a um périplo por dispositivos tecnológicos já obsoletos: uma fita VHS introduzida em um vídeo cassete, uma televisão de tubo que realiza a transmissão dos filamentos, uma câmera analógica para captar a imagem transmitida e um projetor de slides que reconstrói o resultado sobre uma superfície de PVC, onde finalmente a imagem resultante será recriada de maneira realista através da pintura. É este o processo que transpõe informações contidas na fita, irrelevantes do ponto de vista de uma lógica de consumo, a um novo âmbito, onde poderão ser contemplado com atenção e imersão antes inimagináveis.

É fundamental ressaltar que as imagens utilizadas nas obras não são escolhidas totalmente ao acaso, pois o artista busca trabalhar sempre com filmes que não sejam reconhecíveis pelo público. Trata-se de uma estratégia para desviar da lógica inerente aos canais de circulação de informação referidos por Sassen - uma maneira de compensar a interferência existente em escolhas que parecem naturais, mas não são. Ao direcionar toda a nossa atenção a um objeto tão restrito quanto um frame, incorporando ainda em seu trabalho os desgastes imagéticos causados pela deterioração do VHS e pelas limitações de meios tecnológicos obsoletos, Ricardo Mello parece realizar nas artes visuais algo comparável aos Disintegration Loops, do compositor vanguardista William Basinski, que gravou durante horas antigos loops de fita magnética com poucos segundos de duração, que se desintegravam ao longo da transposição para um meio digital. Em ambos os casos, o registro da deterioração de um artefato cultural de caráter descartável revela um tipo de resistência com afloramentos poéticos - e profundamente subversivos.